sexta-feira, 20 de março de 2015

Era só uma ideiazinha

Ok, o de hoje vai ser longo... beeeeem longo. Perdoem-me quem para aqui só pra dar uma olhadinha, mas quando eu comecei esse texto ele deveria ter umas duas páginas, e só. Acabou que ficou muito maior do que eu imaginava, e tão bom que ganhei mais elogios que esperava. Agora, não sei bem o que fazer com ele, talvez eu realmente o aumente e transforme em algo mais ou quem sabe eu engavete pra um livro de contos futuros falando desse lugar... ainda não decidi. Por hora, aproveitem!

O Herdeiro da Realidade

Chovia torrencialmente quando o tribunal ficou em silêncio com a entrada do réu. Caminhando a passos contidos, mais jovem do que a maioria esperava, mas velho demais para ser considerado só um desses noviços rebeldes, o homem calvo de tatuagens que lhe cobriam a careca, parou somente quando chegou ao banco alto, bem no meio da sala. De onde estavam, todos podiam vê-lo sem se esticarem. De repente suas mãos, atadas à frente, foram colocadas sobre o orbe do juramento e o meirinho começou a falar aquilo que teria que repetir.
- Eu, sob os olhares de todo o povo de Jericó, dos deuses e da grande tecnocracia...
- Eu, sob os olhares de todo o povo de Jericó, dos deuses e da grande tecnocracia...
- Aceito que estou sob julgamento, e que passei a ser testado pelo justo sistema dos três anéis...
- Aceito que estou sob julgamento, e que passei a ser testado pelo justo sistema dos três anéis...
- E enquanto estiver com o cordão do laço em meu pescoço não mentirei.
- E enquanto estiver com o cordão do laço em meu pescoço não mentirei.
- Então, sob o julgo dos meus iguais, me submeto a...
- Não posso falar isso, me desculpe. – interrompeu o réu muito calmamente.
Um burburinho estourou na sala lotada, muitos comentando a ousadia daquele homem, e o juiz teve que interromper o barulho com três batidas sonoras de seu martelo.
- Por Orim, Jacó e Manohm! Parem com isso!
- Minha deusa, homem, por que não falas o que te mandam?
- Porque não seria verdade.
- Como não?!?
Então o réu abriu as mãos e raios saíram de seus dedos e olhos, pulverizando os guardas. Ele saiu do altar que estava em direção à porta, como se não fosse nada.
- Aqui não há iguais a mim...
...
Douglas não podia chegar atrasado, seria a quinta vez naquela semana e era sexta, então pulou a cerca, correndo pelo beco. Há dias que não conseguia dormir direito e quando acordava sentia que sua adrenalina estava no máximo, ou seja, podia fazer qualquer coisa. Menos chegar na hora no trabalho. O corpo estava em um misto de cansaço e estouro de energia que não conseguia compreender.
O céu estava naquele tom de marrom que antecede a tempestade, o que era um bom sinal. Chuva era seu tipo de clima favorito, junto de ventos cortantes e nuvens carregadas. Mesmo que estivesse quase sendo arremessado pelo vento, sentia-se mais confortável com esse tipo de tempo que ninguém sai na rua a não ser obrigado, e no qual poderia caminhar tranquilamente. Sabia que nunca seria acertado por um raio ou algo do tipo mesmo.
Virou em uma esquina, esperando ver a saída do beco bem na frente do St. Donnuts, seu honrado local de trabalho, mas um enorme logo da loja ao lado, o feirão do Douglas McIntoshi (não relacionados), havia bloqueado a passagem. O caminhão monstro fazia isso algumas vezes por mês, geralmente quando uma nova queima de estoque, daquelas que o preço sobe 30% pra baixar 10%, estava pra começar. Nunca antes o garoto se amaldiçoou tanto pelo seu azar periódico.
- Mas que droga, como eu vou...
Uma estranha luz azulada surgiu de uma porta aberta logo ao lado, uma que Douglas não havia visto antes. Aquela iluminação fantasmagórica atraiu seu olhar, o fazendo entrar sem ser convidado. Deu-se com uma sala pequena e escura, o brilho que vira vinha de um pedestal bem no centro dela, no qual estava depositada uma esfera. Douglas não ouviu a porta fechar atrás de si, nem a viu sumir, solidificando-se à parede, muito menos reparou na sombra que surgiu logo atrás dele antes de tocar na bola. E aí tudo ficou errado.
O teto de repente virou chão, as paredes pareciam afundar como se fossem quase translúcidas e o pedestal se tornou uma coluna cobrindo todo o meio da sala. Uma mão cobriu sua boca antes que pudesse gritar e um homem de longa barba castanha e coberto por um manto cinzento parou o indicador sobre os lábios fazendo aquele som típico de pedir silêncio.
- Não é uma boa ideia gritar aqui, Doug, você não gostaria do tipo de gente que pode ouvir e responder ao chamado.
- Hum... hum-hm-hm!
- O quê? Ah, sim... desculpe, só... fale baixo. – e se afastou, por pouco não sendo empurrado pelo jovem – Calma, garoto.
- Calma? Que... o que está acontecendo? Por que estamos de ponta cabeça e não caindo? E o que diabos houve com a porta?
- Primeiramente, todas as perguntas podem ser respondidas pela palavra mais universal de todas: mágica. É mágica que nos sustenta, que nos transportou para outro plano e que te trouxe aqui também. Mais precisamente, MINHA mágica.
- O quê? Quê? Não, não, isso é idiotice... loucura... é...
- Sobrenatural? Inesperadamente sensato? Absurdamente genial? Sim, é verdade. E eu ficaria feliz se você reconhecesse isso.
- Você... está realmente biruta se pensa isso, velho. Eu quero sair daqui, vou perder meu emprego e está bem difícil...
- Com suas habilidades você não precisaria servir ao espinhudo do ruivo da lanchonete, Doug. Poderia ser dono de empresas enormes que mandariam nessas coisinhas. Aliás, provavelmente seria ser tão poderoso que nem se importaria com isso.
- Não sei do que está falando mas está começando a me assustar.
- Eu falo do verdadeiro poder, não aquela besteira de status social, montanhas de dinheiro ou um cargo político. Falo de dobrar tudo e todos à sua vontade, de explodir barreiras que forem lhe atrapalhar, de reduzir à poeira seus inimigos.
- Eu preferiria o dinheiro. Sabe, quero comprar um carro ano que vem...
- Ah, que seja! Você vem comigo!
- Pra onde? E como vamos sair daqui?
- Pelo portal é claro... pra onde, você pergunta? Pra que outro lugar se não o centro da magia como conhecemos, Jericó?
O velho tocou no pilar que passou a emitir um brilho intenso e azulado, exatamente como a esfera, e então um vórtice surgiu na parede, sugando ambos para dentro. Prestes a ser tragado pelo maior ralo energético que já vira, Douglas só teve tempo de pensar: “Eu só queria chegar no horário no meu emprego!”
...
As paredes agora eram firmes, estavam no seu devido lugar e o chão poderia ser chamado de chão sem qualquer chance de ser confundido com outra coisa. Meio difícil até considerando que agora Douglas o conhecia tão bem, o rosto grudado em um ladrilho gelado e sujo. Viu o velho ao seu lado, de pé e batendo as mãos nas roupas para espanar o pó. A sala era ainda menor do que aquela em que estavam antes, mas muito melhor iluminada, já que uma forte luz alaranjada entrava pelas janelas e porta abertas.
- Vamos, Douglas, não temos muito tempo antes que...
- ERMITH!!! Eu ouvi sua voz!!! – gritou alguém de não muito longe.
- Droga... precisamos sair daqui. Garoto, eu gastei um bocado de energia no teleporte para cá. Preciso que você...
- Eu o quê? Não estou entendendo nada aqui, velho, e pelo jeito... você não é boa coisa.
- Posso não ser! Mas garanto... as pessoas atrás de mim são muito piores. Agora, projete uma escada para baixo rápido! Ou seremos encurralados!
- Como eu faço isso?
- Só... pense! Projete ali no chão, bem perto daquele canto.
Com toda a força da sua concentração, Douglas imaginou alguns degraus descendo em espiral, surgindo da pedra e para baixo, em direção a não sabe-se o quê. Para sua surpresa, exatamente isso apareceu na sua frente e logo estavam correndo, pulando algumas séries para chegar mais rápido ao fundo. Lá em cima, seus perseguidores haviam encontrado a entrada e agora gritavam por reforços.
- Onde... onde isso vai dar? Fui eu quem fez... essa escada?
- Não, garoto, você só... Uopa! Conseguiu resgatar uma das várias saídas secretas que implantei nesta cidade... no três, um, dois, TRÊS! – saltou por sobre o buraco – Cuidado! Aqui... minha magia selou essas portas mas... só um pouco de poder direcionado e... pronto! Por favor, mire nesta parede... e me faça o favor de acertar com tudo que tem.
Douglas obedeceu, levantando as mãos sem saber o que fazer. Sentiu algo escapar dos dedos, um formigamento crescente na ponta deles, e então as pedras se moveram, dando espaço para um grande arco com mais uma escada. Tudo parecia tão fenomenal que o garoto se perdeu alguns segundos observando. As rochas do arco continham escritos em alguma língua antiga, a qual mexia com as memórias de Douglas, trazendo à tona lembranças há muito esquecidas. Uma dor de cabeça lacinante o fez cair de joelhos.
- Ermith! O que... o que é isso?
- Faz perguntas demais, Doug, não é hora pra isso. Venha, vamos. A passagem não durará muito tempo.
Quanto mais avançavam, mais Douglas percebia o surreal da situação. Atravessaram uma ponte sobre uma cascata que terminava em um lago ardente de águas violetas, subiram até o alto de uma torre para chegar a uma câmara de portais e acabaram em um salão no meio do mercado. Ninguém olhou pra eles quando saíram da geleca esverdeada, nem mesmo com as vestes do rapaz que com certeza não combinavam com o local. Assim como Ermith, praticamente todo mundo usava mantos de cores sóbrias, e os poucos que se metiam a um azul celeste ou vermelho vivo pareciam de uma casta mais elevada e andavam na multidão sem serem incomodados pelos vendedores. Um moleque esbarrou em Douglas e estava quase indo embora quando Ermith o segurou com sua mão cheia de anéis.
- Pirralho... devolva a carteira dele.
- Mas, senhor, não sei do que...
- No seu bolso esquerdo, eu vi. Agora, devolva ou lhe farei o favor de lhe tirar do sofrimento da fome... definitivamente.
De olhos esbugalhados o menino devolveu a carteira de Douglas e saiu correndo, praticamente chorando. Guardando o objeto recuperado no bolso, o garoto deu uma longa encarada em Ermith, analisando-o melhor.
- Você é um homem bem duro, velho.
- Aprende-se com o tempo que para certos tipos de má criação a solução é ser uma ideia pior de futuro. Ele vai entender em alguns anos.
 - A situação tá tão ruim assim por aqui? Por que ninguém faz nada?
- É exatamente por fazerem que pessoas como eu existo, Doug. A maioria aqui já se rendeu à depravação e sobra às crianças trilharem o caminho errado, já que ninguém vai ensinar o certo. Nem todos são como eu e você, que possuímos um grande poder mágico. Na realidade, uns bem poucos conseguem fazer mais do que o be-a-bá. Venha, estamos perdendo tempo demais aqui. Tenho duas ou três coisas a fazer antes de te levar aonde precisa ir.
Passaram por alguns distritos bem diferentes e Douglas notou como o lugar ia do essencialmente mundano, com prédios que eram uma mistura do Brasil colonial com maquinários da Inglaterra vitoriana, ao absurdamente mágico, como quando entraram no duto de éter que os levou aos jardins superiores. Ali, Ermith os fez caminhar pelas sombras, evitando sempre que podia um grupo de senhoras de vestido roxo.
- Quem são elas, afinal? – perguntou Douglas depois de mudarem a rota pela quarta vez.
- Encrenca. Um grupinho que vive aprisionado em dogmas tão antigos quanto o tempo. Nós as chamamos de Irmãs da Criação, apesar de preferir a alcunha Medonhas.
- Isso é bem maldoso... o que você fez pra ser tão perseguido?
- Eu não me submeti. Tudo que é necessário para se tornar um pária em... ah, ali está. Vamos ter que passar pelo canteiro central se quisermos chegar lá. Evite ser visto.
Mais fácil de falar do que fazer, Douglas ainda não trocara de roupas e seu visual chamava a atenção. Ermith sumiu de vista, mas o garoto precisou fazer uns dois dribles para não esbarrar nos vários grupos que caminhavam pelo espacinho de grama e vida por ali. Aparentemente essa era a área de lazer dos nobres, porque não viu nenhuma criança querendo surrupiar sua carteira de novo ou os maltrapilhos do mercado. Chegou ao outro lado e ficou olhando em volta, até que a mão cheia de anéis que já aprendera a reconhecer tocou seu ombro.
- Aqui, rapaz, é aqui.
Entraram em uma salinha pequena e apertada, cheia de véus, almofadas e alguns jarros de narguilé. Sentada em uma das almofadas na parede oposta uma mulher semi-nua, coberta por uns poucos lenços, fumava tranquilamente, olhando para o vazio. Ermith foi até ela e lhe deu um tapa, despertando-a do seu devaneio.
- MAS QUÊ... pai?
- Eu já lhe disse dezenas de vezes, Shesper, que não quero você tentando isso de novo! Sua cabeça não vai aguentar mais uma sessão dessas!
- Eu...eu... e você? Você fez aquele estardalhaço todo e saiu...
- Calada! Aqui não. Quero lhe apresentar alguém, Shes. Garoto, venha cá.
Douglas se aproximou com muita cautela. A cena fora tão louca que estava tentando entender. A mulher deveria ser só uns dois, três anos mais velha que ele mas tinha um porte muito mais imponente. Não parecia em nada com Ermith, a não ser pelos olhos. Ambos tinham os olhos azuis mais profundos que Douglas já vira e enquanto nele se tornavam como de uma águia, sempre astuto, tentando caçar sua presa, nela pareciam como dois lagos muito serenos, sábios. E era extremamente bonita, não daquele tipo suave que se vê em princesas Disney. Não, é o tipo de beleza que um homem precisa batalhar muito para ter o direito de apreciar. Tatuagens cobriam grande parte do seu torso e jóias adornavam seu pescoço, braços e orelhas.
- Shesper, este é Douglas, um terreno. Eu o trouxe para cá para ser treinado.
- Quê? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.
- Pai, o senhor sabe que não está em condições...
- Velho, eu não combinei nada disso...
- Quietos! ZIP! Os dois! Eu decidi isso por nós, Shesper, porque é o necessário e só Doug poderá suprir as nossas necessidades.
- Não... você não quer... eu me recuso! Não vou deixar você ser morto!
- Não serei morto, sua desmiolada. O máximo que pode acontecer é eu entrar em coma. Precisa ser feito! Um criminoso precisa ser capturado e julgado e não vou deixá-lo escapar disso, quebrando as regras mais uma vez.
- Você... você está louco!
- Doug... poderia me dar um tempo com minha filha?
- Todo o tempo do mundo, Ermith... eu estou caindo fora.
- Ah, não. Não está. – e estalou os dedos.
Douglas acordou em uma cama muito macia, muito confortável e superlotada. Ao olhar em volta se viu cercado de jovens dormindo de todos os gêneros e tamanhos, praticamente nús. A vergonha lhe subiu ao rosto rapidamente e começou a procurar um jeito de sair sem acordá-los. Estava quase conseguindo quando uma mão delicada segurou seu pulso.
- Ei... não vá... una-se a nós...
- Ahn... não... eu... preciso ir...
- Não, madame Shesper disse que você deveria ficar... venha... descanse um pouco... tire essas roupas...
Como que encantadas, a blusa e a calça de Douglas se desfizeram, caindo no chão e ele se viu sendo carregado de volta. Entrou em um mar de sensações que iam do terror ao prazer, do medo à confiança, do não ao sim. Esqueceu-se dos problemas, das confusões, das incertezas e das dúvidas. Esqueceu-se do que estava fazendo ali, de como chegar e das perguntas que precisava fazer a... qualquer um, não lembrava com quem devia falar. Quase esqueceu quem era, mas novamente seu pulso foi agarrado, e dessa vez a mão não era tão suave.
- Garoto, saia daí. Shesper! Diga a seus lacaios para largá-lo!
- Eles vão, meu pai, se for o que ele quiser.
- Arre. Douglas, sei que está muito bom e que pode querer ficar aí pra sempre, mas se não sair, serei obrigado a apagá-lo de novo.
Sem nem saber como, Douglas conseguiu escapar das garras sedosas daquela gente toda e saiu andando, sem olhar pra trás. Não queria pensar em voltar, não queria se sentir tentando, e naquele momento uma parte de si, uma com muito orgulho de quem ele era, sofreu um golpe. Estava irritado agora, e precisava descontar isso em alguém, então pressionou Ermith contra a parede e o seguro com o braço em seu pescoço.
- Você vai me dizer o que está acontecendo, velho, e vai me dizer isso AGORA!
- Eu... preciso... de ar... pra... falar...
- Ah, ok. – se afastou e então levou uma descarga mágica no peito que o fez voar contra a outra parede – EI!
- Lição mais importante, garoto, não desista quando está ganhando e não confie em ninguém só porque parece frágil. Você ficaria surpreso como minha garotinha é forte, por exemplo. Mas tudo bem... vou lhe dizer porque trouxe aqui. Fique sentado, a história é um pouco longa.
“Há uns vinte anos, mais ou menos, quando Shesper ainda era um bebê e todos estavam em harmonia consigo mesmos, uma bomba explodiu o Conselho dos Anciões. Mais de metade da cidade entrou em pânico antes que os remanescentes que não estavam na câmara na hora conseguissem restaurar a ordem. Tivemos assassinatos, roubos, e muitos outros tipos de crimes hediondos que nunca foram solucionados. No dia seguinte instaurou-se as Oito Regras da Unanimidade, que tornaram Jericó uma cidade ‘segura’ porém morta. Você viu as ruas que passamos pra chegar até aqui. Apesar de haverem pequenos crimes, os Justicares estão sempre rondando para manter todos em ‘paz’. Foi nesse meio que os mais velhos, os que haviam aprendido o que sabiam antes da bomba, ficaram insatisfeitos e iniciaram uma rebelião silenciosa”.
Ermith fez uma pausa para pegar um cachimbo e o acendeu com a ponta do dedo, fazendo subir uma fumaça amarelada, que cresceu e cresceu até tomar forma de alguns pessoas de mantos, desenhos bobos mas bem-feitos. Eles seguiam as palavras do velho.
- Alguns desses tiveram a brilhante de ideia de, pacificamente, ir alterando as estruturas para fazer um misto dos códigos antigos e novos. Seria bom, iria fazer o sistema alcançar o equilíbrio, se isso não gerasse conflito com os Guardas das Ideias, os caras de branco que nós despitamos no mercado. Eles são os pensadores, enquanto os Justicares... ah, deixa pra lá, você vai aprender logo. O importante é que pelo menos três dos rebeldes conseguiram grandes feitos e mudaram as coisas por aqui... causando muita confusão.
“Um deles foi a julgamento há uma semana e provocou o caos quando fugiu. Alegou que não haveria ninguém lá capaz de julgá-lo por não serem iguais a ele. Faz algum sentido, ele é o mais forte dos magos da região, acredita então que só alguém com o mesmo poder que ele pode tomar as decisões sobre seu futuro. Por isso eu te trouxe, você é o único aqui que poderia chegar a esse patamar. Só precisa... soltar-se primeiro”.
- Está me dizendo... que eu sou um mago poderoso e que vou ser treinado só pra levar um criminoso à prisão?
- É... bem, se depois quiser ficar por aqui, aprender mais, se tornar um servidor de Jericó e...
- Eu... eu não acredito! Mas como vocês são egoístas, hein?
- Você não entende mesmo, Douglas... deixar esse criminoso solto é...
- Pai. Chega. Se ele quer ir embora, deixe-o ir, é melhor pra todos nós, pra Jericó e pra sua saúde.
- Quieta, minha filha, eu estou velho mas ainda aguento alguma ação. E não, não vou deixá-lo ir embora. Ainda vou levá-lo a dois lugares e só então, se ele realmente não aceitar a missão, deixarei que siga seu caminho.
- Está bem, se é o que deseja, Ermith Moneal, o senhor é dono de seu destino. Eu... vou seguir o meu.
Sherpe virou as costas e entrou, deixando um gosto amargo na boca de seu pai. Apesar de brabo, Douglas se sentiu constrangido e pensou um pouco antes de falar.
- Ok, eu aceito fazer esse tour se... você prometer que vai me deixar voltar mesmo se eu disser não.
- Concordo. Não quero fazer julgar um criminoso sob raiva, ou acabará fazendo um mal julgamento do que lhe for apresentado.
- Temos um trato então. Agora, velho... o que você tem pra me convencer?
...
Não era o que Douglas esperava. Nem um pouco. A tal câmara onde o Conselho se reunia deveria ser talvez um marco agora, um memorando de como no passado as coisas estavam bem. O local, uma mistura arquitetônica do Parthenon com o salão de conferências da ONU, estava aos pedaços, ruínas que poderiam afundar alguém desavisado. O chão estava corroído como se tivesse sido banhado em ácido e sombras dos ocupantes das cadeiras marcavam as paredes, manchas causadas pela explosão e desintegração dos corpos. O ar em si era empesteado pelo cheiro do lixo e Douglas conseguiu ver que em alguns pontos haviam coisas deixadas por moradores de rua que invadiram o local. Era a representação máxima da dor na sociedade de Jericó.
Um homem se levantou do meio dos escombros, onde ele escondia suas poucas posses e chegou perto deles, mas Ermith o afastou com um truque de mãos. Outros viram e não tentaram mais nada, tinham medo da magia do velho.
- Este local um dia foi sagrado. Ninguém poderia usar mágica contra os outros, não haveriam discussões acaloradas e nunca, em hipótese alguma, seria tolerada discriminação.
- Pegaram quem implantou a bomba?
- Não importou, não queriam saber quem ou porquê nem como. Só era importante salvar a população da guerra que chegou às ruas. Mesmo aqueles que chegaram a investigar desistiram depois de ver o que se tornou este lugar. Eu quase desisti.
- Isso... é realmente terrível.
- Calma, garoto, não se precipite. Ainda há uma pessoa que quero que conheça. E não é muito longe daqui.
A área ao redor da câmara era um pequeno deserto particular. As construções ou haviam caído com a explosão ou foram demolidas para impedir que matassem mais alguém. Logo ao lado estava o principal ponto turístico de Jericó, o Salão dos Cinco Poderes, formado pelo tribunal, sala de justiça, prisão, centro dos justicares e o museu da memória, único local onde se poderia acessar as histórias do passado da cidade. Ermith foi entrando, sem se importar em ser visto, bem diferente de tudo que fizera até ali. Vários dos trausentes pararam para olhá-los e fugiram correndo depois de um tempo.
Entraram em um corredor longo e guardas os esperavam, prontos para impedi-los, mas Ermith lançou um único olhar e eles abriram uma brecha. Passaram por uma enorme porta de carvalho escuro, marcada com símbolos como das túnicas do velho. Um homem muito baixo e gordo os esperava do outro lado. Tinha os cabelos negros com uns tantos fios grisalhos, óculos de armação grossa e a túnica negra. Seu ar, no entanto, era nem um pouco sério, e seus olhos verdes saltavam de um pra outro.
- Finalmente veio até mim, Ermith. Imaginei que não fosse demorar muito.
- Você sempre sabe das coisas, Sebastian. Desculpe a demora, precisava mostrar a meu herdeiro o que ele deveria saber sobre Jericó e sobre nós.
- Está pronto para a última etapa, então? Sabe que pode não resistir a ela.
- Devemos prender esse criminoso e dar a ele um julgamento justo, Sebby. Ou eu não descansarei em paz.
- Opa, opa, calma aí! Como assim? Achei que você estava firme e forte, velho.
- Não, Douglas, eu não estou. Talvez eu possa sim sobreviver, mas a questão é... bem, deixaria Sebby falar com você.
- Olá, Douglas. Eu sou Sebastian Stone, o líder do conselho atual e também o único homem nesta cidade que ainda confia em Ermith o suficiente para não ter enviado todas as tropas atrás dele quando fugiu. E você, meu rapaz, é minha única esperança de termos um resultado positivo nesta desgraça toda.
- Eu já imagina... Ermith é o tal prisioneiro que não aceitou o julgamento.
- Precisamente. Apesar de discordar dele quanto ao poder de nosso júri...
- Nenhum deles teria cacife pra tanto! – reclamou Ermith.
- Ora, não disse que iria me deixar falar, seu velho carcomido? E se tivesse aceito que Sherpe participasse da mesa...
- Ela é minha filha! Usariam isso contra mim!
- É verdade, infelizmente. Apenas ela poderia lhe entender por completo, mas duvido que ficasse a seu favor.
- Então... vocês querem que eu seja o júri dele.
- Sim, meu jovem, você, um terreno, e ainda por cima um com uma força mágica tão grande...
- Mas... eu nem sei usar meus poderes!
- E acha que porque razão Ermith lhe fez atravessar toda a cidade? Há um portal em cada ponta dela, e você passou por todos, lhe permitindo sincronizar com a energia de Jericó. Os próprios deuses estão a seu favor agora e, mesmo que você não saiba como, será capaz de domar a intensa força que está dentro de si. Eu garanto isso.
Não havia como Douglas discordar. Desde que passaram pela câmara podia sentir que suas mãos formigavam constantemente, mas não era desagradável. Sentia ainda que poderia mover os objetos ao redor com o pensamento, produzir chamas e o que mais sua imaginação permitisse.
- Sim, meu caro, mas sugiro que não pense tão alto. Aqui nós podemos ouvir você gritar.
- Ah... desculpe...
- Tudo bem, eu te entendo. É normal entre os jovens.
- Mas... por que o julgamento de Ermith é tão importante?
- Ele é o último de sua geração que não cedeu ao conselho. Eu mesmo me tornei seu líder para tentar aplainar alguns temperamentos mais... fortes. Mas Ermith estava livre, e poderia fazer o que quisesse... se não tivesse se metido com o Príncipe Imperial.
- Oras, o garotinho precisava ouvir umas poucas e boas...
- Foi só isso? Ele falou com... alguém da realeza?
- Ele invadiou a festa de 18 anos do príncipe, o confrontou e após um intenso debate o fez ir contra doze dos treze membros do conselho que queriam enviar um exército para tentar reconquistar as fronteiras de Gideon! Diacho, Ermith causou um estardalhaço tão grande que tivemos sorte de não ter sido executado secretamente no pavilhão enquanto esperava o julgamento!
- Sorte nada... eles tentaram, eu os impedi. Simples.
- Isso... é muito louco.
- E é por isso que você, Douglas, precisa nos ajudar. Ou se tornará algo ainda pior. Se fizerem de Ermith um exemplo, ninguém mais vai contrariar o conselho quando forem injustos. E aí a cidade afundará de vez em sua própria sujeira.
Douglas olhou para os dois velhos e sentiu lá dentro que já havia aceitado. Era uma nova vida, uma bem diferente da que imaginava quando saiu de casa. E parecia ótima, se soubesse aproveitar as oportunidades. Sorriu e eles lhe responderam.
...
As pessoas não paravam de gritar, tentando fazer mais barulho que a tempestade do lado de fora, mas todos ficaram em silêncio quando a porta abriu e Ermith entrou. Parecia mais cansado que nunca, mas exibia um sorriso matreiro, de quem havia aprontado e sabia que não iam poder lhe punir por isso. Foi arrastado até o mesmo lugar onde dias antes fizera a balbúrdia de fugir e parou de pé, se erguendo mais alto do que parecia. Todos olharam para Sebastian, que presidiria o julgamento.
- Ermith Moneal, você volta a nós para ser julgado por seus crimes contra Jericó. Este é seu júri, você o aceita para prosseguirmos com o interrompido?
Ermith virou-se para olhar Douglas, o único sentado em uma tribuna vazia, que parecia muito sério em sua túnica azul-petróleo. O rapaz não sorriu de volta, mas tinha no olhar aquela eletricidade que fizera Ermith se atrair por ele. Seria um ótimo herdeiro de seus poderes caso tudo desse errado.
- Sim, meritíssimo.
- Douglas Gabriel Franco, você, um terreno, recebeu a missão de julgar Ermith Moneal e dar a ele um justo veredito. Acha que é capaz disso?
Douglas olhou intensamente para Ermith e depois para a multidão que esperava ansiosa.
- Sim, meritíssimo, eu me considero capaz de ser justo e honesto.
- Então... finalmente começaremos a decidir o destino de Jericó.

2 comentários:

  1. Adoro a aventura por trás desse conto, é muito bom! E o final..!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu gosto muito de filmes tipo o Aprendiz de Feiticeiro e coisas do gênero, então quis colocar esse clima na história. Diverti-me muito escrevendo!

      Excluir