terça-feira, 12 de março de 2019

Belas Maldições - Humor britânico mais afiado que a foice da Morte

Esta é minha 100ª postagem neste blog. Eu já fiz resenhas, poemas, contos, colaborações e até posts meio perdidos. Eu só percebi que era um post "comemorativo" quando fui colocar aqui o que tinha escrito. Por isso minha maior celebração será agradecer a vocês que vem me ler, mesmo os que não comentam! Só por saber que estão aí já ajuda bastante. Obrigado!

Quando a Deusa fez o mundo ela deve ter pensado "taí... preciso de gente pra deixar isso divertido" e foi lá e criou Neil Gaiman e Terry Pratchett... um dia eles também se uniram e... Belas Maldições nasceu.

Belas Maldições


Neil Gaiman criou a Morte, uma figura gótica (linda) e simpática que tem suas próprias desventuras ao cumprir seu papel como força do Universo que estará lá no final, ela já sabe disso, e é por essa razão que ela se permite ser melancólica, ás vezes mais que o irmão, Sonho, por incrível que pareça. Terry Pratchett também criou a Morte, a criatura esquálida, na real esquelética, que frequenta os eventos mais esquisitos e, quando é alguém importante, como um Mago, faz uma visita pessoal para buscar sua alma. Sem qualquer senso de humor, nem mesmo expressão, é uma das figuras mais carismáticas do Mundo do Disco. Juntos, eles criaram mais uma Morte... e um Apocalipse. E todo o resto.
A bela Morte de Gaiman
Belas Maldições é um livro que levei anos pra pegar mesmo sabendo que eu deveria ler. Eu gosto dos livros do Gaiman, eu adoro Discworld, então por que não? A resposta era óbvia, na verdade: eu não estava preparado para o que eu ia ler. Diferente do que pensei, o livro escrito a quatro mãos não é tão palatável quanto os do Terry, nem tão exótico quanto os do Neil. Fica no meio termo, com um humor britâncio, tiradas ácidas e diretas, e situações tão excêntricas que não consegui imaginá-las por completo. Mas o resultado continua sendo ímpar, tão cheio de referências que eu não saberia citar
nem metade, e completo, mesmo com a sensação de tantas pontas soltas.
Neste colab monstruoso nós conhecemos três figuras muito importantes: Aziraphale, um anjo que já foi guardião de um dos portões do Éden e hoje atua como livreiro (talvez o melhor que já vi... e o pior ao mesmo tempo); Crowley, a serpente que deu a maçã a Eva e que é indiretamente ou diretamente responsável pelo sucesso do Armaggedon; e Adam... o Anti-Cristo, filho do Capeta e o principal protagonista deste evento. Acompanhando as situações dos três intercaladas com a presença de mais uma dezena de outros personagens muito divertidos, o Apocalipse vai se aproximando, como se fosse uma grande festa, mas quem programou não avisou os convidados de que seria em outro lugar e a banda está voltando de um hiato de milênios e não faz ideia do que tocar. E essa é a melhor descrição que posso fazer sem entregar nenhum spoiler.
O texto é sórdido, ele te faz se perguntar se você deveria torcer ou não pelo Apocalipse, o que é bem uma característica de Terry Pratchett, mas ele também nos brinda com uma mitologia que é tão simplista quanto confusa e que te faz imaginar por horas o que há além daquilo, algo típico de Neil
A Morte veio buscar Terry como uma amiga
Gaiman. Peguemos o Cão, por exemplo, o monstruoso companheiro infernal de Adam, enviado para proteger e acompanhar o garoto em suas malevolências. Agora, imagine que por conta da criação nada deturpada da criança ele se tornou normal e por conta disso o cachorro infernal TAMBÉM ficou... normal. Ficamos na expectativa do que pode acontecer caso o Cão, por alguma sorte do destino, torne-se a máquina de destruição que ele foi projetado pra ser. O resultado? Hilário.
E esse é o ponto chave do texto dos dois. Ainda que as situações, dentro da minha concepção de leitor veterano, não estejam no ápice do que eles podem escrever, os personagens estão tinindo de tão afiados. Crowley é sádico, divertido, provocador. Aziraphale é um gentleman, um espécime de connossieur de classe S das profecias... ah, sim... as profecias.
Durante o livro nós somos apresentados às' Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa, possivelmente as únicas inscrições da história que são realmente fidedignas aos eventos que irão acontecer muito, muito depois da morte da sua autora. Um livro dentro do livro, esse tomo sagrado é do interesse tanto de Aziraphale quanto de outros personagens que acabam por aproveitar das predições para compreender o que está acontecendo, que às vezes nem nós, os leitores, oniscientes, conseguimos. E como são engraçadas as anotações da falecida e sacana maga. Por si só, a história de Agnes poderia render todo um livro maravilhoso. Sua personalidade, aliás, muito lembram outras bruxas de ambos os autores, o que comprova que a união deles rendeu bons frutos.
Mas Belas Maldições não é de todo perfeito. Algumas passagens causam perda de ritmo, o que me fez travar em alguns pontos, em especial quanto aos garotos de Adam. Parece que para não ser muito rápido em relação aos outros eventos do livro, o núcleo dele entrou em marcha lenta ao ponto de haver passagens que meio que repetem algo que já vimos antes. Além disso, os coadjuvantes do garoto, as outras crianças, não são tão divertidas quanto, digamos, a descendente da bruxa ou o caçador de bruxas novato. Por isso mesmo, Belas Maldições não é um livro que eu recomendaria para iniciantes em ambos os autores, deixando para depois de estarem acostumados com os estilos deles.

A LENDA!
Não por menos, depois de anos no forno estamos vendo os trailers da série que vai sair pela Amazon Prime e que tem um elenco primoroso, um design muito fiel às ideias dos livros (mas eu acho que os cavaleiros podiam ser um pouquinho mais estilosos) e, obrigatório, a trilha sonora com Queen. Até mesmo as adaptações parecem ter sido bem pensadas, com a inclusão de um personagem novo que parece MUITO interessante. Apesar de Terry Pratchett não estar mais neste plano, tendo ido se encontrar com Rincewind no Discworld, Neil Gaiman tem dado sua benção para essa produção e o trailer me animou um bocado.

Olha só essa dupla de anjos! (lindos David e Michael)
Então é isso, se você já é fã de um dos dois e ainda não leu Belas Maldições coloca na sua lista como Urgente para se preparar pra série e divirta-se. E se você for participar do fim do mundo não perca a chance de adquirir seu exemplar das previsões da Agnes. Eu te garanto, vai ser muito útil!

sábado, 26 de janeiro de 2019

Beastars - Uma metáfora colegial arrebatadora

Em vários anos lendo mangás, tive muitas boas surpresas e muitas decepções também, normalmente gosto de ler coisas diferentes, tentando encontrar obras que fujam do padrão shounen ou shoujo. Eventualmente descubro leituras agradáveis, rápidas e que se tornam esquecíveis, mas cuja experiência é, no mínimo, relaxante. E ás vezes... aparecem coisas como Beastars, que é um soco no estômago a cada capítulo, completo com personagens interessantes, uma narrativa agoniante e um suspense de dar nó. Uma delícia que está chegando ao Brasil pela editora Panini.

A trama principal ocorre no colégio Cherryton onde um estudante é assassinado e ninguém tem um suspeito, afinal, o colégio é lotado de "carnívoros". Legosi, um desses, é membro do clube de teatro e apesar de ser grande e parecer violento é um doce de pessoa. Um dia ele encontra Hal, uma garota muito pequena que tem uma aparência inofensiva, mas uma personalidade difícil e cheia de camadas. Apesar de se deixar envolver com Legosi, Hal tem um caso com a estrela do clube de teatro, Louis. Tudo bem japonês, a não ser pelo fato que Legosi é um lobo, Hal uma lebre e Louis um cervo... ah sim! E o assassinado foi uma ovelha de nome Tem.

O uso de animas antropomórficos como metáforas para estereótipos dos mangás é genial, com direito a várias referências ao padrão de divisão da sociedade. Os carnívoros e os herbívoros convivem no colégio mas há uma linha tênue no relacionamento deles que torna a vida escolar uma bomba prestes a explodir. Se por um lado Legosi se preocupa com sua atração por Hal com medo de comê-la no sentido literal da coisa, Hal está curiosa e ao mesmo tempo em pânico com a ideia de deixar ser comida... no sentido bíblico. A rivalidade de Legosi e Louis então, é uma mistura interessante de disputa de popularidade com a dominância do mais forte. Legosi é um monstro lutador, Louis é um astro de inteligência mordaz. E mesmo assim, fica óbvio que ambos são grandes amigos apesar de adversários.

O Belo e a Fera
E quando se pensa que a trama já entregou tudo que podia nós temos uma reviravolta, e outra, e outra. O mercado negro, o guardião que encontra Legosi, a máfia dos leões, a "outra loba", cada arco de Beastars é muito denso, cheio de personagens interessantes e muita tensão. Eu tinha até esquecido do assassinato do Tem até que a história joga na sua cara a resposta e ao mesmo tempo que ela parece simples há toda uma discussão sobre amizade e fome, dos mais diversos tipos. Mais uma vez, a metáfora quanto ao mundo animal é bem explorada.

Claro, Beastars não é perfeito, ás vezes algumas soluções apresentadas parecem até estúpidas, e temos personagens que, mesmo tendo sua importância, acabam relegados à diálogos ou atuações pífias como o Jack, melhor amigo de Legosi que aparece de vez em nunca. Por mais que eles se conheçam desde a infância, Legosi nunca procura Jack por conselhos ou pra ajudá-lo, talvez querendo proteger o labrador, talvez porque Legosi seja muito o lobo solitário. Mas isso não impede Jack de dar uma mãozinha, mesmo sem querer.

Cada encontro entre Legosi e Hal é bonito e também difícil de engolir
Duas coisas me surpreenderam pra valer em Beastars e me motivaram a recomendá-lo: uma envolve a vida pregressa de Louis e o passado de Legosi, que acabam se ligando ainda que de uma forma bem sutil. Sem dar spoilers, ambos tem problemas muito sérios em sua criação e é difícil dizer quem teve a infância mais zoada. A segunda coisa foi o cuidado em ser um mangá adulto mas sem apresentar características típicas dos seinens que se levam muito a sério, como a hipersexualização ou o gore exagerado. Estamos falando de animais que tem instintos primitivos de caça e sim, ocorrem lacerações, batalhas violentas e mortes, mas não tem sangue sobrando nas páginas ou violência gratuita só para saciar a sede de jovens que se divertem com a dor alheia. Em Beastars uma luta pode ser vencida com um golpe mortal ou uma palavra bem usada. Como no mundo real.

Amor adolescente: Sério e brutal
Na parte técnica tenho que exaltar o traço de Paru Itagaki, a autora consegue dar expressões muito humanas em rostos animalescos e transmitir todo tipo de emoção, de medo à tesão, de dor à prazer. E seu texto é muito dinâmico, do tipo que permite diálogos sagazes seguidos de piadas que não são do tipo mais normal, mas que exaltam a personalidade confusa dos adolescentes em costumeira confusão da idade. É o único trabalho que vi dela, então acredito que seja seu primeiro. Assim sendo começou muito bem! Publicado desde 2016, o mangá conta com atualmente 11 volumes e continua em circulação.

Beastars chegará em breve (tão breve a Panini permitir) e se você estiver procurando algo pra colocar na sua lista de leitura recomendo que dê uma chance. Provavelmente não vai se arrepender.