segunda-feira, 25 de março de 2013

Mudez Compromissada

Eu devo admitir que adoro surpresas, principalmente quando consigo ser eu a surpreender, positivamente, os outros. O conto de hoje, quentinho, recém-saído da minha mente, foi preparado como um pequeno presente pra minha noiva, Ann, e sua mais nova criação, uma sacerdotisa morta-viva com o simpático nome de Celly Burton. Bom, espero que aproveitem essa minha incursão por Azeroth, foi muito legal de fazer e espero voltar pra lá e contar mais histórias de seus heróis.

Celly Burton

A sala estava tão escura que fosse uma semana antes, Celly seria incapaz de ver um palmo a frente do nariz, mas agora isso não era mais um problema. Os dedos esqueléticos batiam a pena na folha à frente, e poderia jurar que um deles estava prestes a cair, o que seria motivo de asco para Célia, mas não para Celly. Agora era natural, parte de sua existência, e mesmo a carne morta com o fedor era habitual para a sacerdotisa. O entrevistador continuava a olhar para a folha há dez minutos, sem nada dizer e a falta de órbitas impedia de saber se ele havia dormido ou não.
- Celly... Sobrenome? – disse, assustando a garota.
Ela pensou nos vários homens e mulheres que havia tratado nas fileiras da Aliança, lembrava de cada nome, de cada rosto, pensou em um rapaz que achara bonito e que havia morrido meses depois, deixado no campo de batalha, assim como ela. Tivesse seguido seus instintos e não sua honra, sua devoção, estaria agora casada, talvez não viúva. Guardaria o nome para sempre, para nunca esquecer o mal que lhe fizeram.
Escreveu o nome em um papel e estendeu para o oficial, que levantou o que restava de uma sobrancelha, encarando a boca costurada de Celly. Havia pouco fizera um juramento, um que carregaria pelo resto da vida marcado na carne, de que não voltaria a pronunciar palavra alguma, e principalmente clamar pelos deuses antigos. Servia agora a uma nova causa, uma nova vida, se é que poderia ser chamada assim. O oficial baixou os olhos e preencheu alguma coisa em sua papelada.
- Sendo assim, será muito difícil tirar de você a história de como chegou até aqui... Vejo, na sua carta de recomendação, que sua Valkyria foi Artura... Ela não fica na região de Pinhaprata? O que você estava fazendo por lá antes de ser morta?
Celly respondeu com um olhar feio, lembrando a ele de que perguntas seriam estupidez, mas sua mente já corria para alguns dias antes, quando ainda servia ao exército do Rei Varian e sua fé era na santidade dos homens, e de como todos os mortos-vivos eram a pior face da Horda, a escória que um dia fora humana e corrompera-se pela imortalidade. Ingressara muito cedo na Igreja de Ventobravo e seguira os soldados da capital pelas incursões para o sul. Quando um grupo se reuniu para desbravar o norte logo foi escalada dada sua devoção e habilidade. Partiu em um navio, contornando os Reinos do Leste e desceu em Eira dos Montes, onde, com uma unidade menor, partiu em patrulha. Seria sua última vez ao lado dos homens que julgava tão corretos e justos.
A batalha não durou muito. Eram apenas vinte diante de cinquenta, e não tão treinados em regiões como aquela, dominada pela praga. Viu homens bravos caírem e os medrosos correrem, mas viu principalmente seu capitão, o mesmo do discurso de “Nenhum de nós fica para trás”, vê-la cair, ferida pela espada de guerreiros mortos-vivos, e não mover um dedo para ajuda-la. Acreditava piamente que poderia ter sobrevivido, que teria, como seu capitão, retornado para a proteção do exército, e então não teria sido enterrada em uma vala comum, ainda viva e pedindo ajuda aos deuses. Ninguém respondeu.
A Valkyria veio depois, quando a escuridão já havia encoberto seus olhos, e a luz de suas asas prateadas lhe trouxe de volta à vida. Seu corpo começara a se decompor, mas salvara a maior parte do seu rosto. Ela lhe prometeu lugar entre os Renegados e uma nova vida, muito mais proveitosa, em serviço da grande dama Sylvana. Com uma linha de costura selou para sempre sua voz, que talvez não fosse como lembrava, e prometeu a si mesma que nunca a escutaria, para lembrar sempre do que perdera aquele dia e o que ganhara.
- Eu falei com você, recruta! Onde está com a cabeça?
A voz ruidosa do oficial a trouxe para o presente e Celly se sobressaltou. Faíscas de mana surgiram da ponta de seu cajado, fazendo com que o soldado se afastasse e por um minuto Celly achou que não seria só descartada, como seria permanentemente. Ao contrário, o recrutador sorriu e fez mais algumas anotações. Era algo horrendo e Celly desconfiou que levasse um tempo pra que aquilo se tornasse tão natural quanto a queda de dedos. Enfim, o soldado fez um sinal para que uma banshee, vestida em um traje lilás com o símbolo de Cidade Baixa, se aproximasse.
- Aelthalyste, esta é mais uma das suas, treine-a bem e deixe pronta para que ela possa voltar a Pinhaprata. Não sei bem o que aconteceu com ela lá, mas tenho a impressão de que ela tenha negócios pendentes. E faça-me o favor de não rogar outra praga!
A criatura lançou um olhar tenebroso para Celly, mas ela percebeu que havia um pequeno sorriso malicioso nos lábios fechados do espírito. Sentiu empatia, pois ambas não podiam abrir suas bocas, ela pela promessa e a banshee por questões de preservação, já que seus gritos seriam capazes de ferir até mesmo os mortos-vivos. Seguiu a banshee pelos corredores da Cidade, avistando aqui e ali criaturas estranhas aos esgotos, como Orcs, Goblins e principalmente Elfos Sangrentos. Lembrou rapidamente que a própria Grande Dama havia sido uma elfa em sua outra vida e percebeu que certos laços seriam impossíveis de quebrar.
Mas ela havia feito uma promessa para si mesma, de que lutaria contra aquilo que a havia destruído, uma herança tenebrosa de uma vida de enganação. Havia novos aliados e a Horda a recebera de braços abertos para aquela batalha, então não os decepcionaria. De cabeça erguida entrou com a banshee em uma sala comunal, onde outros sacerdotes, de diversas raças, a aguardavam para ensina-la os ritos de sua nova família.

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