terça-feira, 9 de julho de 2013

Essa batalha não é minha

Aproveitando que hoje eu resolvi mudar tudo por aqui (logo os textos anteriores vão seguir o padrão deste aqui e tudo ficará bonito), eu trouxe um texto novo, para comemorar as mudanças em grande estilo. Pra dizer a verdade, tanto o título quanto as primeiras palavras do conto vieram ao mesmo tempo e eu não fazia ideia do que faria com o soldado sem nome que as proferiu ou quem realmente seria ele, e no fim, acho que a frase que usei pra esse post representa tudo, é exatamente o pensamento do personagem e de quem está lendo.

PS: Milhares de agradecimentos à Ann, que me ajudou a editar todo o blog hoje!

Sangue e Terra



Sangue e terra. Quando se está no meio de um combate, principalmente um que faz parte de uma longa guerra, é o gosto mais comum, sangue do seu oponente e a terra que você come quando se joga no chão para fugir de um ataque. Torça para nunca ser o seu sangue e o da terra que você afunda o rosto depois de ser acertado ou não haverá vinho depois para tirar o gosto horrível da boca.
Somos soldados, soldados impossíveis de serem derrotados, de acordo com nosso tenente, e devemos ir ao combate todo dia santo para que eles continuem santos. Bom, se somos invencíveis não sei, mas já tivemos mais de mil baixas desde que chegamos no mês passado, a maioria por doenças e a praga, e estamos com apenas dois terços do exército pronto para a batalha. Se continuarmos assim, nosso tenente terá que mudar o lema. Se ele sobreviver, é claro.
Se me dissessem que esta seria minha perspectiva de vida há dois, três anos atrás, não teria me tornado escudeiro de Sir Jordan Miguel. Não que tivesse uma opção melhor em minha terra, com todo aquele trabalho braçal nos campos e a esperança de conhecer a mais longe fronteira que nós poderíamos chegar, que era a cidade vizinha, Layden. Mas quem sabe, com sorte, eu conseguiria fugir com os ciganos quando nos visitassem de novo e hoje estaria dentro da fortaleza de Mayan, e não do lado de fora comendo pão preto e tomando água suja. Pela Deusa, é possível que isto nem água seja, a latrina está bem próxima do poço!
Subitamente, um estrondo interrompe meus devaneios e eu vejo um dos muros de sacas ruir. Nosso capitão, Sir Kingstone, avisou três vezes já que enquanto não fizéssemos uma paliçada e enviássemos um pequeno grupo buscar reforços e suprimentos, mais vezes receberíamos más notícias. Talvez ele fosse ouvido se não soubéssemos que ele queria liderar esse contingente e fugir o mais rápido possível da péssima ideia que era tentar invadir a instransponível Mayan, com seus muros de pedra de cinco mil anos. O cheiro de pólvora explicou a presença de uma pesada pedra, talvez de uma das grossas camadas dos muros da cidade, bem no meio da cabana do capitão Kingstone. Acho que alguém concordaria com a ideia dele agora.
Stevens, meu colega de tenda e a pessoa mais bem humorada que você poderia encontrar no meio daquela chacina, pôs a cabeça pra fora para ver o estrago imenso no meio do acampamento. Mordendo uma fatia de pão de rosca, branquinho e até com alguns temperos, ele abriu um sorriso medonho, do tipo que ele fazia antes de uma de suas fantásticas anedotas.
- Sabe, com mais uma dúzia dessas a gente já pode começar a construir um muro que nem o deles. – e mordeu mais um naco do pão, que me fazia aguar a boca.
Seria muito mais feliz se, como Stevens, eu tivesse a cara de pau de usar alguns contatos para me arranjar confortos. Quase ninguém comia bem no acampamento, e posso jurar que Stevens é o único soldado raso que já provou um bom gole de cerveja por aqui. Além disso, tínhamos sérias restrições quanto à presença de mulheres em nossas tendas, o que não me impediu de calmamente ser expulso para fora quando uma das garotas surgia para “tratar das feridas do soldado Stevens”. Se ele não fosse tão feio, diria que tinha sido seu charme, mas sabia que era a gorda sacola de moedas de prata que ele guardava em algum canto da minúscula tenda e que já havia ameaçado cortar fora meus dedos se eu procurasse.
Sinceramente, Stevens que se exploda. Ele, Sir Jordan Miguel e o finado Sir Kingstone. Um mês de luta todo dia, de cavar trincheiras e covas, de atirar contra os barris de pólvora para que eles explodam na parte de baixo dos muros, onde é mais frágil, e de ter que costurar e carregar corpos para longe do campo de lama, assim outros soldados podem ir morrer lá. Nada disso valia a pena por míseras cinco moedas de ouro por mês. Aliás, moedas que, infalivelmente, começaram a sumir depois de um tempo, já que eles foram obrigados a baixar nosso soldo quando a guerra realmente estourou. Se agora eu visse ao menos uma delas quando recebesse o soldo, seria uma imensa alegria e motivo para festa.
Sol ardente, falta de água e ainda o pão ruim, tudo isso nos faz pedir, quase implorar por uma boa noite de sono, para que possamos, nem que seja em sonhos, ter uma vida menos miserável. E isso me lembra as missas do vigário. O bastardo deve ter realmente algum contrato com Deus, ou quem sabe um pacto com o Diabo, a única explicação para ainda estar vivo. Diferente de nós, ele veste apenas sua túnica, que ainda assim deve ser mais quente que o fogo do Inferno, e vive embaixo de sol, chuva e o que vier, pregando para nós, abençoando nossas tendas e armas e também a comida dada pelo Senhor, aleluia!
Se isto é o máximo que vou ganhar Dele, talvez seja uma boa me converter pra religião de nossos inimigos, porque parece que eles comem fartas refeições, tamanho lixo que é despejado pelos canos ao fim de uma semana. Lixo que acho que vira nossa comida nas ocasionais reuniões de sábado, quando comemos todos juntos esperando as novas ordens dos capitães. Eu posso atirar em qualquer um, até mesmo em mim, se me render uma folga para não ter que aguentar o sermão do padre Highson e sua voz embargada de fé e do maldito vinho que aparentemente é seu combustível para a lenga-lenga que escutamos sempre.
Subitamente, ouço mais um daqueles tiros e espero pelo barulho de mais uma tenda esmagada. Mordo um grande pedaço do pão velho, sentindo um gosto novo, peculiar, de sal, mas um sal diferente. De repente sinto o vinho, ou algo que deve ser como isso, muito doce, e que vem em fartos goles. Sinto meu corpo adormecer, e está tudo mais macio agora, como se tivesse finalmente recebido a cama que mereço. Esse vinho é realmente muito bom, já que meu corpo parece nas nuvens. E o sal, diacho, esse sal me lembra algo. Um sal que escuto algumas vezes naquele papo do padre Highson, o que é mesmo? Ah sim, o Sal da Terra. Vejo então o que é minha deliciosa refeição. Sangue e Terra.

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