Escadur Fast
- Deixe-me ir, disse o sábio ao rei, poderei fazer o melhor
por nosso reino se for a outras terras, conhecer outros como eu, e talvez
aprender outros truques.
O soberano, já murcho da fome e do cansaço, ponderou por
longos minutos e então acenou ao seu servo mais leal com a mão de dedos finos
na qual os anéis pesavam. Provavelmente não teria muitas forças em breve, então
evitava os discursos e também os grandes gestos para não gastar as energias.
- Vá, Escadur, e vá rápido pois se não tiveres pressa logo
provavelmente também não terás lar, e pousou a cabeça no próprio ombro entrando
em um sono profundo e preocupante.
Os outros serviçais entreolharam-se, alarmados, e um deles
correu para acordar o rei, mas foi interrompido por seu filho, que de tão magro
quase caiu de costas com o toque.
- Deixe meu pai dormir. Há dias que não o vejo fazer isso
com tanta calma. A dor da fome nos tomou também o descanso noturno.
Escadur correu ao ouvir tais palavras. Para um velho era
ainda muito novo, mal havia completado seus quarenta ciclos solares quando
recebera a incumbência de ser o conselheiro mór do rei Kandalth, o Ébrio, e
agora temia que talvez não fosse servir aos seus descendentes. Desde que uma
maldição se instalara no reino ninguém mais acreditava que haveria um futuro ou
talvez mesmo um presente. Os alimentos tocavam-lhe a boca, mas não o estômago,
desparecendo tão logo eram absorvidos. Mesmo crianças gordinhas haviam se
tornado pequenos ratinhos desnutridos por aqueles dias tristes.
Desconfiado, Kandalth ordenara aos seus guardas que
vasculhassem as casas atrás de feiticeiras ou bruxos mal intencionados mas após
alguns interrogatórios infelizes constataram que não havia qualquer criatura
mágica entre os seus. Apenas quando todas as tentativas deram em nada é que o
rei aceitara que talvez fosse preciso pedir ajuda. Agora sobrava a Escadur a
missão de visitar todos os seus amigos antigos e torcer para que algum deles já
houvesse ouvido falar de tal fenômeno.
Primeiro foi o nobre Ar’khon, imperador da Cidade de Prata,
o coração do atual domínio humano, e também o seu mais antigo amigo. Por ser
sábio e poderoso, talvez pudesse lhe ajudar em sua empreitada e fornecer os
recursos para tanto. Mas, ao chegar a seu castelo, no alto da montanha branca,
encontrou o aliado em prantos, desconsolado.
- Grande Ar’khon, líder da bela Kit’has-rah, capital dos
homens, o que te aflige, meu irmão?
E diante dos olhos encharcados de Ar’khon, toda a missão de
Escadur pareceu minguar, sentiu seu coração murchar e tremeu com a tristeza que
agora compartilhava.
- Meu amigo, ó, meu doce amigo, minha amada se foi... após
tantos anos, após esse tempo todo que estivemos juntos... minha Haruin faleceu.
Amaldiçoado sou eu por ser eterno! Que os deuses me devolvam minha fatalidade e
me deixem perecer ao seu lado!
Escadur entendeu de imediato o sofrimento e também chorou.
Conhecer Haruin quando era jovem e vira a beleza do amor deles e também temera
pelo dia que acabaria. Ar’khon, como o senhor de todos os homens, recebera o
dom da imortalidade, que também seria sua perdição. Os outros sábios cantavam
que no passado Ar’khon já tivera o coração perfurado por outras paixões mas
nenhuma como a por Haruin. E agora que ela se fora, ele se tornaria vazio e
talvez os homens estivessem perdidos.
- Venha comigo, Ar’khon, pois sem vossa força talvez meu rei
acabe definhando, assim como seu reino...
E explicou tudo, em todos os detalhes. Sentiu nascer nos
olhos e também na alma de Ar’khon uma chama. Sabia que ele tinha um carinho por
Kandalth, a quem considerava um filho, e quem sabe o fosse. Já vivia há tanto
tempo que provavelmente todos os humanos de Gaia Sancta fossem seus herdeiros.
- Eu irei, meu adorado Escadur, e salvarei o reino de seu
soberano!
Partiram da Cidade de Prata seguindo caminho para as florestas
de Shantel, lar de Regulos, o Alto, um dos poucos homens a domar o caminho do
arco e comandar o exercíto dos Álficos, os primeiros seres de Gaia Sancta. De
pele esverdeada, olhos em tons de caramelo e longos cabelos dourados, esses
hominídios eram mais inteligentes e gentis que os humanos, mas possuíam também
vida mais curta. Regulos em si já chegara aos cinquenta e mostrava sinais de
que não duraria muito mais, mesmo assim veio saudá-los com afeto e energia.
- Oh, meus amigos, que bons ventos trouxeram vocês à minha
morada?, e recebendo as notícias seu rosto se converteu em uma máscara de pena,
Não me diga, Escadur, Kandalth não sobreviverá? Ó, por favor, que ele possa ver
meu enterro e que derrame lágrimas por mim, não suportaria imaginá-lo em um
caixão.
- Então, Regulos, não haveria nada que você poderia nos
dizer para ajudar? Pois a mim e a Ar’khon só sobrou questionar nossos amigos.
De olhos lacrimejantes o caçador negou e deixou-se cair em
sua cadeira de vime. As mãos coçaram as têmporas, visivelmente incomodado. Por
fim mandou chamar Khimbi, seu mais fiel e antigo companheiro, e também o
estranho no ninho. O meio-urso tinha uma barba espessa que se confundia com seu
pelo amarronzado cobrindo o peito. Fez uma reverência para Ar’khon, a quem
reconhecia como majestade das terras em volta e abraçou Escadur.
- É bom vê-los novamente após tantos anos. Mas por que
vieram até aqui, e trazem feições tão singelas e tristes?
- Nossos irmãos necessitam de ajuda, Khimbi. – disse Regulos
e então tocou no ombro dele – Por favor, siga-os em sua jornada e ofereça nosso
apoio em meu lugar.
- Mas é claro, meu senhor! Ar’khon, meu lorde, Escadur meu
amigo, podem contar com meu machado.
E assim os três partiram em busca da última boa alma que
poderia dar a eles alguma luz, Frollo, neto de Bilro, e o mais humilde morador
de Baixovale, o território sulista da Gaia Sancta. Outrora um escritor, Frollo
narrara as aventuras deles enquanto cresciam como pessoas e também em reputação
e era provavelmente a pessoa mais informada em toda terra conhecida pelos
homens. Não que fosse um, Frollo descendia do lendário povo dos Maradinos, os
esguios e delicados filhos do sol. De bom coração, feições gentis e um ótimo
senso de humor, eram hospitaleiros como poucos e mais afetuosos do que seria
sensato, geralmente cometendo falhas de confiança em excesso.
Sua mansão, a maior em toda Baixovale, era também a
hospedagem da maioria de seus parentes, pessoas de bem e tão divertidas quanto
ele e que receberam os três com muita alegria. Ar’khon pareceu ganhar vida ao
ser conduzido pelas mãos dos diminutos e frágeis filhos de Frollo até seu
estúdio na torre mais alta. Lá, encontraram o amigo cercado de pilhas de papéis
e olhos cansados. Parecia ter envelhecido décadas desde a última vez que se
viram.
- Ar’khon! Escadur! E o bom e velho Khimbi! Saúdo-os e
recebo em minha casa. Vejo que estão precisando de um bom chá de erva-madre.
- A verdade, Frollo, é que chegamos com pesar no coração.
Precisamos de sua ajuda...
E foram contando tudo, cada pedaço da jornada iniciada com o
Rei Kantalth até o momento em que pisaram em Baixovale e com isso a expressão
de Frollo foi mudando e mudando até chegar a uma de quem tinha algo a dizer.
Coçou a cabeça de cabelos encaracolados e pegou um de seus livros, o qual devorou
em segundos. A fome dos Maradinos não era só por comida e muitos tinham o
conhecimento acumulado de toda uma nação. Quando acabou fechou o livro e
recostou-se na cadeira fumando seu cachimbo de bambu.
- Kantalth está com os dias contados, meus amigos, e não há
nada que possam fazer... e eu sugiro que não procurem mais. Retornem para casa
e vão descobrir que tudo seguirá seu caminho. Acreditem em mim, verão dias
melhores em breve. E mais, Khimbi, digo também que você terá que tomar decisões
difíceis em breve. Talvez a você Ar’khon, reste a missão mais fácil mas também
a mais pesarosa.
Com estas palavras, Ar’khon, Escadur e Khimbi se sentiram
afundar em seu desespero e tomaram o caminho de volta. Encontraram Shantel em
estado de caos, Regulos, o Alto, morrera em seu sono e agora estavam sem líder.
Coube a Khimbi assumir o papel e viram o povo comemorar o surgimento de uma
nova estrela a lhes guiar, uma que duraria muitos anos e que poderia levar-lhes
em uma nova direção. Regulos teve um enterro digno, aos pés da árvore de seus
pais.
Ar’khon também teve uma surpresa ao retornar para casa e
perceber que o luto passara e o povo agora precisava dele novamente. Haviam
muitas decisões a tomar e logo sua cabeça se encheu do orgulho de seus homens
que batalhavam para trazer um sorriso a seu imperador. Teve de abandonar também
sua tristeza e ocupar seu lugar. Em dias seus olhos voltariam a brilhar, em
meses não teria mais pesadelos, e em anos aceitaria nova mulher em seu coração.
Já Escadur, em galope constante, atravessou as fronteiras do
reino e percebeu que o povo não estava nas ruas. Com medo, encaminhou-se ao
palácio, esperando ver as bandeiras negras, mas pelo contrário, nas paredes
haviam flâmulas de diversas cores, e trombetas e música, e dança e o sábio viu
as pessoas em vestes novas e não mais definhando. O próprio príncipe se unira a
elas, em uma alegria que há muito Escadur não via. Aproximou-se dele
desconfiado e foi recebido com um abraço apertado.
- Escadur! Você voltou! Viva! Amigos, aqui está o homem mais
honrado e mais dedicado de nossa corte! E também o melhor de todos nós!
- Não entendo, meu príncipe, quando saí estas pessoas, o
senhor mesmo e seu pai sofriam de fome terrível... e agora...
- Ah, mas meu pai está bem! Todos estamos ótimos! Há poucos
dias, quando achávamos que você não voltaria mais, um pássaro de fogo cruzou os
céus e entrou nos aposentos de meu pai. O incêndio começou imediatamente, e
todos entramos em pânico, mas de tão exaustos e fracos nada pudemos fazer.
Juntamos as cinzas e estávamos prontos para o funeral quando do meio da sujeira
meu pai saltou nu em pelo e totalmente curado. E mais, ele irradiava um calor
intenso e uma felicidade sem igual. Sua energia contagiou a todos e logo
estávamos nos banqueteando.
- Mas que maravilha! Que emoção! Oh, fico tão feliz com pelo
menos esta boa notícia! Mas... por que você me louva se nada fiz?
- Meu pai disse, tão logo estava lúcido e bem para falar,
que o pássaro, antes de queimar sua cama e as cortinas, olhou em seus olhos e
ele reconheceu sua vontade. Era o seu coração Escadur, que de tanta tristeza
liberou todo seu amor por nós para nos salvar. Ele veio até aqui e nos
chamuscou com sua bondade. E agora estamos salvos, meu amigo e podemos
comemorar.
Escadur soube que era verdade e de olhos cheios lágrimas foi
ter com o rei que o abraçou e beijou como o melhor amigo que já tivera. Não
poderia se vangloriar pelo feito e muito menos dizer que tinha sido planejado,
mas estava feliz por ter todos de volta. Tinha feito sua jornada e ido lá e cá,
até finalmente voltar ao seu lar.
Ficar procurando os easter eggs foi bem divertido. Gosto quando tu propões esses desafios pro leitor (bom, pelo menos pra mim foi XD)
ResponderExcluirLinda história, meu caro.
Eu acho que uma das coisas mais legais é quando você lê um texto e se sente parte integrante da história, conseguindo captar as referências. É tão divertido que eu sempre quero ler mais.
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