Aproveitando que hoje eu resolvi mudar tudo por aqui (logo os textos anteriores vão seguir o padrão deste aqui e tudo ficará bonito), eu trouxe um texto novo, para comemorar as mudanças em grande estilo. Pra dizer a verdade, tanto o título quanto as primeiras palavras do conto vieram ao mesmo tempo e eu não fazia ideia do que faria com o soldado sem nome que as proferiu ou quem realmente seria ele, e no fim, acho que a frase que usei pra esse post representa tudo, é exatamente o pensamento do personagem e de quem está lendo.
PS: Milhares de agradecimentos à Ann, que me ajudou a editar todo o blog hoje!
Sangue e Terra
Sangue e terra. Quando se está no meio de um combate,
principalmente um que faz parte de uma longa guerra, é o gosto mais comum,
sangue do seu oponente e a terra que você come quando se joga no chão para
fugir de um ataque. Torça para nunca ser o seu sangue e o da terra que você
afunda o rosto depois de ser acertado ou não haverá vinho depois para tirar o
gosto horrível da boca.
Somos soldados, soldados impossíveis de serem derrotados, de
acordo com nosso tenente, e devemos ir ao combate todo dia santo para que eles
continuem santos. Bom, se somos invencíveis não sei, mas já tivemos mais de mil
baixas desde que chegamos no mês passado, a maioria por doenças e a praga, e
estamos com apenas dois terços do exército pronto para a batalha. Se
continuarmos assim, nosso tenente terá que mudar o lema. Se ele sobreviver, é
claro.
Se me dissessem que esta seria minha perspectiva de vida há
dois, três anos atrás, não teria me tornado escudeiro de Sir Jordan Miguel. Não
que tivesse uma opção melhor em minha terra, com todo aquele trabalho braçal
nos campos e a esperança de conhecer a mais longe fronteira que nós poderíamos
chegar, que era a cidade vizinha, Layden. Mas quem sabe, com sorte, eu
conseguiria fugir com os ciganos quando nos visitassem de novo e hoje estaria
dentro da fortaleza de Mayan, e não do lado de fora comendo pão preto e tomando
água suja. Pela Deusa, é possível que isto nem água seja, a latrina está bem
próxima do poço!
Subitamente, um estrondo interrompe meus devaneios e eu vejo
um dos muros de sacas ruir. Nosso capitão, Sir Kingstone, avisou três vezes já
que enquanto não fizéssemos uma paliçada e enviássemos um pequeno grupo buscar
reforços e suprimentos, mais vezes receberíamos más notícias. Talvez ele fosse
ouvido se não soubéssemos que ele queria liderar esse contingente e fugir o
mais rápido possível da péssima ideia que era tentar invadir a instransponível
Mayan, com seus muros de pedra de cinco mil anos. O cheiro de pólvora explicou
a presença de uma pesada pedra, talvez de uma das grossas camadas dos muros da
cidade, bem no meio da cabana do capitão Kingstone. Acho que alguém concordaria
com a ideia dele agora.
Stevens, meu colega de tenda e a pessoa mais bem humorada
que você poderia encontrar no meio daquela chacina, pôs a cabeça pra fora para
ver o estrago imenso no meio do acampamento. Mordendo uma fatia de pão de
rosca, branquinho e até com alguns temperos, ele abriu um sorriso medonho, do
tipo que ele fazia antes de uma de suas fantásticas anedotas.
- Sabe, com mais uma dúzia dessas a gente já pode começar a
construir um muro que nem o deles. – e mordeu mais um naco do pão, que me fazia
aguar a boca.
Seria muito mais feliz se, como Stevens, eu tivesse a cara
de pau de usar alguns contatos para me arranjar confortos. Quase ninguém comia
bem no acampamento, e posso jurar que Stevens é o único soldado raso que já
provou um bom gole de cerveja por aqui. Além disso, tínhamos sérias restrições
quanto à presença de mulheres em nossas tendas, o que não me impediu de
calmamente ser expulso para fora quando uma das garotas surgia para “tratar das
feridas do soldado Stevens”. Se ele não fosse tão feio, diria que tinha sido
seu charme, mas sabia que era a gorda sacola de moedas de prata que ele
guardava em algum canto da minúscula tenda e que já havia ameaçado cortar fora
meus dedos se eu procurasse.
Sinceramente, Stevens que se exploda. Ele, Sir Jordan Miguel
e o finado Sir Kingstone. Um mês de luta todo dia, de cavar trincheiras e
covas, de atirar contra os barris de pólvora para que eles explodam na parte de
baixo dos muros, onde é mais frágil, e de ter que costurar e carregar corpos
para longe do campo de lama, assim outros soldados podem ir morrer lá. Nada
disso valia a pena por míseras cinco moedas de ouro por mês. Aliás, moedas que,
infalivelmente, começaram a sumir depois de um tempo, já que eles foram
obrigados a baixar nosso soldo quando a guerra realmente estourou. Se agora eu
visse ao menos uma delas quando recebesse o soldo, seria uma imensa alegria e
motivo para festa.
Sol ardente, falta de água e ainda o pão ruim, tudo isso nos
faz pedir, quase implorar por uma boa noite de sono, para que possamos, nem que
seja em sonhos, ter uma vida menos miserável. E isso me lembra as missas do
vigário. O bastardo deve ter realmente algum contrato com Deus, ou quem sabe um
pacto com o Diabo, a única explicação para ainda estar vivo. Diferente de nós,
ele veste apenas sua túnica, que ainda assim deve ser mais quente que o fogo do
Inferno, e vive embaixo de sol, chuva e o que vier, pregando para nós, abençoando
nossas tendas e armas e também a comida dada pelo Senhor, aleluia!
Se isto é o máximo que vou ganhar Dele, talvez seja uma boa
me converter pra religião de nossos inimigos, porque parece que eles comem
fartas refeições, tamanho lixo que é despejado pelos canos ao fim de uma
semana. Lixo que acho que vira nossa comida nas ocasionais reuniões de sábado,
quando comemos todos juntos esperando as novas ordens dos capitães. Eu posso
atirar em qualquer um, até mesmo em mim, se me render uma folga para não ter
que aguentar o sermão do padre Highson e sua voz embargada de fé e do maldito
vinho que aparentemente é seu combustível para a lenga-lenga que escutamos
sempre.
Subitamente, ouço mais um daqueles tiros e espero pelo
barulho de mais uma tenda esmagada. Mordo um grande pedaço do pão velho,
sentindo um gosto novo, peculiar, de sal, mas um sal diferente. De repente
sinto o vinho, ou algo que deve ser como isso, muito doce, e que vem em fartos
goles. Sinto meu corpo adormecer, e está tudo mais macio agora, como se tivesse
finalmente recebido a cama que mereço. Esse vinho é realmente muito bom, já que
meu corpo parece nas nuvens. E o sal, diacho, esse sal me lembra algo. Um sal
que escuto algumas vezes naquele papo do padre Highson, o que é mesmo? Ah sim,
o Sal da Terra. Vejo então o que é minha deliciosa refeição. Sangue e Terra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário