PS: Continuo horrível pra títulos!
Visita ao Sonho
Você sabe o que é acordar ao meio dia, encarar o vazio na parede
do seu quarto e pensar que deveria ter continuado dormindo? Se disser que sim,
será um mentiroso terrível pois até hoje eu nunca tinha ouvido falar de algo
que sequer fosse parecido com isso, que dirá tão cheio de detalhes como quando
o Sonho invadiu meu mundo apenas para me trazer um anão de cachimbo com uma
carta em folhas de bananeira. Pois foi exatamente assim que comecei aquela
segunda-feira.
Eu havia ido dormir no domingo com a estranha sensação de
que teria um péssimo dia seguinte, já imaginando como explicaria ao meu chefe
que a festa da faculdade no sábado havia me deixado tão ferrado que eu passara
o resto do fim de semana devolvendo meu almoço de quando tinha quinze anos e
por isso não podia terminar o relatório que ele me pedira. Há duas semanas.
Sim, eu odiava meu emprego, mas quem poderia me culpar? Não odiamos todos
nossos chefes ranzinzas de quarenta, quase cinquenta, como cara de sessenta?
Bom, eu pelo menos admito.
Mas nada me preparara para o anão, que aliás usava um casaco
laranja-lima com um gorro em plena primavera e que tinha a barba mais pontuda
do mundo, podem conferir no Guinness. Ele me olhava com suas contas esmeralda,
cheias de um brilho sobrenatural e assustador, e pigarreou quando me viu
piscando devagar, como se quisesse que ele entrasse em foco. Tirou a bananeira
da bolsa de couro e me estendeu, pois era óbvio que eu deveria pegá-la e
entregar a ele uma moeda de bronze pelo serviço. Oh, desculpe, estou me
adiantando.
- O que é isso? – foi o que perguntei brilhantemente.
- O que parece, meu chapa? É claro que é uma folhagrama. E é
bom ler rápido, pois fui pago por uma resposta, e não para ficar esperando.
- Mas... o quê...
- Olha aqui. – ele apontou aquele cachimbo fedorento pro meu
rosto – Eu sou um servidor das entregas a vácuo desde que eles inventaram as
cartas-de-bilbouda, então é bom que tenha respeito por mim e deixe-me terminar
meu trabalho. Ok?
- Tudo bem, tudo bem! Não precisa se irritar... homenzinho. –
sussurrei a última palavra com medo que ele enfiasse aquele pedaço horrendo de
madeira em meu nariz.
A letra era muito rebuscada, cheia de volveios
desnecessários que só dificultaram a leitura, que aliás, fez um nó na minha
cabeça antes de perceber que não deveria pensar na lógica das palavras, mas no
que havia por trás dela. Ou seja, dane-se o mundo, apenas leia, divirta-se,
tipo o filme pipoca ruim que você vai ao cinema ver e esquece que está lá, até
que acaba e você sai do cinema rindo e comentando com os outros como foi a pior
experiência da sua vida e pronto, pode ir pra casa assistir aquele clássico
cult e que sim traz uma mensagem, normalmente edificante e cheia de mistérios
que você nunca vai desvendar.
“Caro Normie (porque meu nome é Norman e sim, alguém achou
que seria um bom apelido)
Estávamos contando com sua excelentíssima e grata
participação em nosso sistema de auxílio aos não-encantados e que poderia,
talvez, em alguma instância próxima entre hoje e a próxima lua dos dois
quartos), unir-se a nós na corte para discutir os assuntos referentes ao seu
tio em segunda cláusula do sol de três pontas, Willfred Von Duck, e que, caso
não se faça de rogado ou ache por demasia enfadonho, possa dar a ele uma defesa
digna para que não se vá diante da lâmina mui afiada de sir Godrick dos Picos
Altíssimos, que deseja de todavia fazer da cabeça de seu tio um belíssimo
troféu para alegrar sua casa de veraneio em Lago Flock. Desde já interessados
em sua visita e tomando de chá com bolinhos,
Os reis de Monastergo”
E havia um Anti scriptum colocado no fim do texto, mas fora
feito com algum tipo de tinta que se derreteu ou talvez tenha sido só
esparramada por ali e não fazia mais o menor sentido. Definitivamente o tipo de
coisa que passaria por falta de educação se o anão não estivesse batendo seu
longo e desproporcional pé com uma expressão assassina em seu rosto redondo e
barbudo. Cocei a cabeça e fiquei olhando para a folha até dizer uma tolice:
- Ahn... então... eu acho que vou?
- Ótimo. É uma mensagem enfim! Ufa! Posso tirar minhas
férias. Aqui. – ele deixou um pacote que mais parecia um daqueles que envolvem
lembrancinhas de casamento e se jogou no abismo na minha parede – Monaaaa!
Estou in...
Desapareceu, levando consigo o vácuo e devolvendo a pintura
abacate que minha mãe insistira que ficaria bem e não me enjoaria ao vê-la todo
dia ao acordar. De fato, eu não consegui, já que a tinta vagabunda começou a
descascar e cobrira tudo com pôsteres, restando apenas um trechinho que
lembrava uma teia de aranha muito bêbada. Olhei para o pacote e puxei o
lacinho, esperando que um sapo saltasse de dentro. Para minha surpresa era uma
caixinha de música simples, com uns poucos ornamentos dourados sobre uma
superfície rosada.
Tão bonitinha, eu a girei entre os dedos três vezes até
decidir que talvez fosse uma boa pô-la para tocar. Que mal haveria nisso? Como
deve perceber, foi uma das minhas decisões ruins que culminaram no que seria a
experiência lisérgica mais louca desde que tomei aquela bala em uma festa
prestes a completar 17 anos e fui parar em uma bóia no meio da piscina cercado
de balões e uma menina semi-nua. Melhor não falar mais nisso. Onde estava? Ah
sim. A caixinha. Eu girei a chave que a ativava e de repente senti muito, muito
sono. Nem lembro como era a música, talvez fosse uma versão techno punk de Hey
Jude, algo assim, tenho certeza que tinha a voz de Paul...
E então eu estava em uma sala de teto xadrez. Não, não me
enganei ou estava de cabeça para baixo, o teto realmente tinha ladrilhos de
duas cores e o chão era coberto por um carpete verde-musgo que faria minha mãe
sorrir pela escolha. Era uma sala menor que meu cubículo no escritório e tinha
apenas uma poltrona e um sofá, além de uma mesinha com o conjunto de chá mais
estranho. Mas bem, na situação que estava, como poderia julgá-lo? Um senhor me
observava da poltrona, e ele usava um terno bem alinhado, risca de giz, da cor
de um céu de tempestade e pantufas de ursinhos carinhosos. Seus óculos de
coruja haviam escorregado para a ponta do nariz mas ele não parecia se
importar. Observava-me como um cientista que de repente descobre uma formiga
andando sobre seu projeto de dois bilhões de dólares.
- Levante-se, Norman, temos que conversar. Seu tio não pode
esperar muito tempo.
- Desculpe-me... como o senhor me conhece? Onde estou? Quem
é você? Quem é esse tio Valfredo? E como diabos vim parar aqui?
- Bom, são muitas perguntas meu rapaz, não tenho tempo para
todas. Qual prefere ouvir?
- Eu... acho que sobre o tio...
- Ah sim, Willfred. Sim, sim, um bom amigo, uma pena que um
tanto biruta, com suas ideias sobre geogamia, carros movidos a sonhos e aquele
papo sobre músicas feitas com instrumentos eletrônicos. Todos sabemos que
batidas são apenas isso, é como um macaco cantando ópera! Bem, Willfred está
profunda e sumariamente encrencado e provavelmente prestes a enfrentar o pior
julgamento de toda a história feérica, animada e talvez até do submundo. Devo
dizer que se tiver sorte, o exílio será uma opção agradável.
- Eu... não entendo.
- Rapaz. Quão bem foi sua adolescência?
- Não posso reclamar... muito. Eu tive uns amigos, fui a
algumas festas, namorei uma garota...
- Sim, sim, tudo normal, não é? ESTE é o problema!
- Como assim?
- Veja bem, você, Norman, deveria ter sido contatado por seu
tio quando tinha 13 anos e nem um dia a mais, ou pelo menos encontrar um diário
perdido aos 14 ou recebido uma carta misteriosa dois anos depois, que o levaria
a uma jornada de auto-conhecimento, descobrimento de poderes inigualáveis e
quem sabe encontrar a garota de seus sonhos ainda que não soubesse nem o que é
ter uma paixão direito. Mas não! Willfred estava tão concentrado em seus
experimentos com o veículo e aqueles docinhos de padaria que esqueceu! Ele
ESQUECEU! Veja que absurdo!
- Eu... não sei do que está falando. Eu tive uma boa
juventude... acho. Não posso dizer que... você falou de poderes? Sou algum tipo
de mago, por acaso?
- Ah, essa besteira? Naaaaah... no máximo deve ser capaz de
lamber o próprio cotovelo e calcular os números primos de cabeça. Não, não,
falo daquilo que todo jovenzinho tem, a autoconfiança excessiva, a criatividade
para problemas e a transformação de uma situação comum em drama. Você foi
excessivamente tranquilo e sereno. E isso é errado! Por conta disso, seu tio
agora deverá se justificar diante do conselho e eles com certeza devorarão ele
vivo com pouco sal e pimenta!
- Fala sério? Porque eu tive uma adolescência comum e boa
ele vai pagar o pato? Prefeririam o quê? Que eu tivesse virado um rebelde sem
casa?
- Oh sim, que grande emo você teria sido! Consigo vê-lo de
cabelo preto e liso e olhos pintados, compondo poemas! Poderia até ter montado
sua banda de dois instrumentos e virado uma sub-celebridade do YouTube!
- Por favor, não. Estou feliz assim mesmo.
O velho suspirou e largou sua xícara do lado apontando para
o sofá, que eu cordialmente sentei. Ficar de pé havia me cansado pra valer e a
conversa parecia que seria muito longa. Ele coçou a cabeça revelando um buraco
entre seus longos cabelos prateados.
- Então você vai defendê-lo. Boa sorte.
E tudo ficou brilhante e ofuscante. Em seguida eu estava no
meio de um tribunal de vários andares, ainda no sofá e cercado de guardas,
todos vestidos em armaduras absurdamente brilhantes e cheias de entalhes e todo
mundo me olhava. E eu falo dos mais diversos e esquisitos seres mágicos já
imaginados. Fadas, duendes, anões, elfos, gnomos, vampiros, lobisomens... tudo
que puder e o que nunca conseguirá imaginar. Eles me olhavam como se eu fosse o
rei Elvis prestes a se apresentar. Creio que vi pelo menos dois iguais a ele e
ao Michael no meio da multidão. Um senhor, quase tão velho quanto o que falava
comigo antes, estava sentado de pernas cruzadas em uma tartaruga colossal e
olhou para mim antes de falar.
- Norman dos mortais sonhadores, você está pronto para
defender seu tio, Willfred Von Duck?
Seu dedo longo indicava um rapaz não muito mais velho que
eu, mas dono de um bigode de dar inveja à Dali, vestido em uma combinação que
não me surpreendia mais de camisa social, saia escocesa, casaco de poliéster e
um par de fones de ouvido apoiados nos ombros. Parecia prestes a ir a uma das
festas que eu tinha ido recentemente e poderia ser meu veterano que nem notaria
a diferença. Tirando isso, seus cabelos eram tão azuis que provavelmente
despareceriam junto do chroma key durante uma filmagem. Ele não sorria, mas tinha
o ar brincalhão de quem estava prestes a aprontar.
- Eu... acho que sim.
- Ótimo, podemos avançar para isso de uma vez.
Excelentíssimo julgador?
Um duende de preto com um turbante escarlate veio saltando
por entre os guardas até ficar de pé na minha frente, em cima de uma mesinha.
Mesmo com o apoio, a diferença de altura era clara e se eu ficasse de pé ele
bateria em minha cintura. Eu fiquei encarando-o até que ele tirou uma vareta e
apontou para meu nariz, muito mal educado.
- VOCÊ, MORTAL!
- Não precisa gritar... – murmurei.
- NÃO ME INTERROMPA! VOCÊ! COMO OUSA VIR ATÉ AQUI, DIANTE DE
TODA ESSA GENTE, E DEFENDER ESTE IMUNDO, PREGUIÇOSO E TOLO DJINN QUE NUNCA FEZ
NADA PARA CUMPRIR SUAS FUNÇÕES!
- Não, sério... tá doendo meu ouvido...
- CALADO! AGORA, FALE!
- Mas eu não...
- RESPONDA MINHA PERGUNTA!
- Olha, aqui, sua decoração de jardim furiosa, quer me
deixar falar? Você me perguntou, então vou responder! Eu não sei que droga está
acontecendo aqui ou que tipo de coisa ele deveria ter planejado para mim, mas
estou bem com a porcaria da minha vida, então dá pra libertá-lo, me devolver
pro meu quarto e me deixar enfrentar o desgraçado do meu chefe e dizer a ele o
quanto eu espero que ele sofra enfiando aquele relatório no meio do...
- É ISSO QUE DESEJA? DE VERDADE?
Eu vi o olhar em Willfred que me fez estremecer. Ele parecia
que me dizia “Cuidado, pode não ser uma boa escolha. Mas se é isso mesmo que
quer, estarei aqui para lhe apoiar. Ah sim, e pode vir me visitar outras vezes
se quiser. Você parece um sobrinho muito legal, uma pena que nunca falei com
você antes. Bem, espero sua visita!” o que foi muito estranho, porque ele só
sorriu e então o julgador maluco bateu na minha perna e gritou de novo.
- SE É ASSIM, CASO ENCERRADO, MERITÍSSIMO!
E foi assim que de repente eu estava no meu cubículo,
segurando a caixinha de música e mais sóbrio do que nunca na vida, logo antes
do meu chefe entrar e me perguntar do relatório. Não sei se foi por causa do
que eu tinha sonhado, ou se teve alguma realidade naquilo, mas achei que seria
uma ótima ideia dizer a ele o que tinha dito no Sonho. Sim, foi uma ideia
imbecil e claro que fui despedido. Mas não me arrependo nada disso.
Queria tanto sonhar com algo foda assim, que me desse esperanças de ser mais do que uma mera humana...
ResponderExcluirAdorei o conto. Óbvio que adoro todos, acho que ficou claro já. Mas me identifico tanto com esses fantasiosos, dá vontade de ficar lendo e ser parte da história!
Quem disse que foi sonho? XD Essa é a graça do conto aqui, eu não afirmei nada em momento algum. ;)
ExcluirHei! Divide o chá? Amei o texto! Lendo ele eu consegui sentir os mundos de Changeling e Tormenta! E é claro uma pitadinha de Alice! Sonhos são libertadores, segui-los causam situações extrema, para o bem ou o mal.
ResponderExcluirDe fato... todo sonho faz uma parte de si escapar, seja ela boa ou ruim, e muitos deles revelam bem mais do que esperamos! Ah, eu amo sonhos... mas e se... não for tudo sonho? O Sonho é um lugar misterioso, complexo e cheio de tramoias!
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