O Mistério do Casarão
A porta abriu, rangendo, e os passos ecoaram pela casa,
evidenciando o abandono de tantos anos. As camadas de poeira causaram espirros
na invasora e sua companheira se perguntou se era mesmo uma boa ideia aquela
incursão. Claramente não haveria muito o que explorar na sala de entrada, os
móveis cobertos por lençóis que outrora foram brancos, estátuas cobertas de pó
acinzentado, o chão irreconhecível de tanta sujeira. Lentamente as duas amigas
caminharam, ligando a lanterna para poder ver os detalhes em cada canto.
Assim que entraram, uma fria rajada de vento levantou grãos
de terra e janelas bateram, uma porta fechou violentamente e um lustre gemeu em
sua armação de ferro antigo. A garota de longos cabelos castanho-dourados e
óculos saltou de susto, enquanto sua pequena amiga de cabelos negros sufocou um
riso. Ainda que estivesse preocupada, o pulo repentino fora o suficiente para
quebrar o gelo, e as duas acabaram deixando escapar curtos ataques de riso.
Mais leves depois disso, ingressaram no grande salão de festas e acabaram
espantadas.
Dado o estado do resto da casa, foi extremamente assustador
encontrar o cômodo arrumado, como se estivesse sendo usado frequentemente.
Selina estancou e Elisabeth quase esbarrou nela. Cada mesa estava em seu devido
lugar, as cortinas abertas seguradas por largas faixas de cetim, o chão
ladrilhado perfeitamente limpo, os lustres brilhantes, as tapeçarias de várias
nacionalidades dispostas pelas paredes. Faltou ar às duas amigas, que perderam a noção
de quanto tempo ficaram encarando aquele ambiente destacado de todo o resto,
imune à passagem dos anos.
Aos poucos Selina passou a caminhar por entre as mesas,
tocando-as para ver se não desapareceriam, tamanha era sua descrença. Elisabeth
a acompanhava, estralando a língua, seu objetivo ainda não era naquela sala.
Elas haviam combinado uma aventura e aquilo, por mais surpreendente que fosse,
não era bem o que ela esperava. Ao chegarem ao centro, perto de onde estava o
lustre, quando a luz apagou, quase completamente. Uma música lúgubre começou a
tocar e uma pequena luminescência, do tamanho de uma bola de beisebol, flutuava
perto delas. Uma risada suave arrepiou os pelos da nuca de Selina e Elisabeth
podia jurar que ouviu passos passando por ela.
- Liz? Você ainda está aí? – perguntou Selina e dando dois
passos para trás, sentiu que encostava em alguém, mas com certeza não era sua
amiga.
As luzes piscaram rapidamente e Elisabeth pode ver o
estranho homem que encostava as mãos nos ombros de Selina. Era alto, tinha a
pele mais branca do que a sua, os cabelos pretos presos em um antiquado rabo de
cavalo e as roupas eram tão antigas quanto. Pensou em gritar, chamar a atenção,
mas o barulho que soou em seguida acabou fazendo com que parasse no meio do
caminho. As luzes voltaram e Selina havia sumido. Elisabeth olhou em volta,
assustada, procurando pela amiga, e nenhum sinal dela.
- Lina? LINA?
Nada, apenas o silêncio da solidão e do salão que, de
repente, não estava mais arrumado. Os mesmos lençóis sujos cobriam agora as
mesas, exatamente como em todos os outros cômodos, e as paredes estavam
descascadas. A luz era fraca, e faltavam algumas lâmpadas ao lustre, deixando o
local ainda mais macabro. Um movimento despertou a atenção de Elisabeth, que
viu o estranho homem andando em sua direção, mesmo que ele não estivesse ali um
minuto antes.
- Minha amiga! Onde está Selina? – gritou ela, demonstrando
preocupação.
- Acalme-se, minha querida, por agora sua amiga não importa.
– ele respondeu e sua voz era profunda, ainda que transparecesse imaturidade. –
Meus sinceros cumprimentos, donzela, você é bem vinda nesta mansão.
Havia algo de muito bizarro na forma como ele andava, algo
que destoava na visão da mulher, que lhe causava uma espécie de náusea, que não
conseguia identificar. Ele trajava um manto escuro, em tons de azul, sobre uma
camisa branca dos tempos napoleônicos e uma calça justa também escura,
praticamente preta. Botas de cano alto com detalhes em prata e uma fita de
veludo prendendo os cabelos fechavam o traje que estava deslocado no tempo,
como se fosse um homem de séculos antes. Andava devagar, passos muito lentos e
seu corpo parecia balançar, em uma dança sem música e sem compasso, um pêndulo
humano.
Só quando ele chegou muito perto é que ela percebeu que ele
não estava pisando no chão. Seus pés flutuavam a quase vinte centímetros do
chão e ele balançava por seguir pequenas correntes de ar, deixando uma presença
fantasmagórica no ambiente. Ele percebeu o olhar dela e fez um gesto afetado,
representando alguém que foi pego no flagra, mal segurando a risada diabólica.
- Boo!
Ela chegou a pensar em gritar, até mesmo sair correndo,
ainda que fosse sentir falta de Selina. Mas revirou os olhos, bufando. Aquilo
havia sido a coisa mais anticlimática que ela já vira na vida e todo seu medo
sumiu. Como não sentiu o efeito desejado, o homem se lançou para trás e jogou o
corpo no ar, realizando acrobacias como em uma piscina, tentando
impressioná-la. Depois de três ou quatro saltos ainda sem conseguir triar um
gritinho dela, ele parou, de braços cruzados.
- Deveras irritante sua persistência. Assim sendo, irei ao
encontro de sua amiga. Talvez ela me renda alguns bons berros de medo.
E desapareceu no teto, atravessando feito gelatina. Foi o
suficiente para deixar Elisabeth ainda mais enjoada e ela tampou a boca a tempo
de segurar a ânsia. Olhando em volta, nenhum sinal de Selina. Partiu então para
a próxima sala. Parada não encontraria nada nem ninguém.
Em outro cômodo Selina alisava as têmporas, sentindo que
havia levado uma pancada ali. Doía não só a cabeça como os braços e pernas, de
ter sido segurada com força por alguma coisa ou alguém e jogada para dentro
daquele quarto. A parede tinha restos de um papel de parede dos tempos de sua
avó, com detalhes de flores em lilás e rosa sobre um tracejado de branco e
bege, em uma combinação que claramente havia se tornado enfadonha há pelo menos
cinquenta anos. Tropeçou ao sair da cama e se espantou em ver que havia
esbarrado em uma das muitas pilhas de tranqueiras dos donos da casa. Haviam
caixas de madeira, montes de roupas, um manequim de fibra de tecido e até mesmo
um cavalete de pintura espalhados pelo chão do quarto.
Observou ao redor e reparou nos móveis bem trabalhados e
ainda inteiros, o lustre de vidro da era colonial, o espelho de corpo inteiro
com armação de ferro escovado e o distinto homem parado de pé ao lado da cama.
Só que havia algo de muito errado nisso, não por ele estar ali e ela não ter
reparado antes ou por suas roupas completamente discordantes do século atual,
apesar de que ali dentro, ela e Elisabeth é que estavam fora de época, mas por
ele estar parado como uma estátua de cabeça para baixo. Ela segurou o urro que
ia dar com todas as forças, o que pareceu causar nele repúdio, fazendo uma
carta incomparável.
- Ora, mas me tomam por tolo e zombam de mim, suas
invasoras! Nem ao menos um som de espanto eu consegui de vocês duas! Pois bem,
se nada posso como minha forma atual, irei causar tanto medo em vocês que se
unirão a mim após terem ataques do coração!
E desapareceu, assim como veio, no meio do nada. Selina
abriu e fechou a boca algumas vezes, incrédula em ter visto um fantasma
“rodando a baiana” e resolveu, para não ficar ali, sair em busca de Elisabeth.
Quanto antes saíssem daquela casa maluca, melhor para sua sanidade.
Por corredores distintos, as duas amigas percorreram a
maioria dos quartos, evitando chamarem o nome uma da outra para não atrair o
poltergeist que as assombrava. Subitamente, um mórbido som de violino cortou o
silêncio, penetrando em cada fresta das paredes, em cada buraco no chão, em
cada centímetro do corpo das duas amigas. Era uma melodia triste, macabra,
melancólica e era irresistível. Atraiu as duas garotas pelos corredores até a
ala sul. Lá chegando, encontraram o enorme salão de baile, que um dia fora belo
e dourado, mas agora estava desgastado, em tom de cobre e com apenas uma fração
do brilho de outrora. O fantasma estava lá, esperando, tocando o violino negro.
Assim que elas entraram as portas atrás de si fecharam e o
fantasma parou a música. Ele trazia uma expressão divertida, maquiavélica, e
com uma simples vibração em uma das cordas do instrumento, todo o mundo pareceu
virar de cabeça para baixo. Por cada parede, chão e teto surgiram casais de
diferentes idades, épocas, estilos e até mesmo tamanhos, dançando uma valsa
fúnebre, preenchendo todo o espaço do salão, ainda que nunca se tocassem, pois
ao atravessavam uns aos outros. Um órgão preso na parede era tocado por um
músico sem cabeça e um maestro banhado em ectoplasma regia uma orquestra de
esqueletos. O fantasma girava, rindo, percorrendo todo o salão através de seus
iguais, esperando pelos jubilosos gritos de pavor das meninas. Que não veio.
Pelo contrário, elas pareciam extasiadas, os olhares não se
paravam em nada, seja no casal robusto de fraque e corset que parecia ensaiar
um tango ou no violoncelista que usava a própria perna como o arco para tocar.
Tudo era estranho e ainda assim fantástico, uma festa sobrenatural de enorme
porte. Deveriam ter medo do sangue espectral das vítimas de mortes sangrentas ou
do olhar perdido das almas vagantes, mas nada, nem por um segundo, parecia lhes
causar tal emoção. A um estalar de dedos o fantasma fez com que todos os outros
sumissem e elas estavam uma vez mais sozinhas com ele.
- Mas já? Estava tão divertido! – exclamou Selina, um pouco
desapontada.
- Por mim eles podiam ter dançado a noite inteira. –
concordou Elisabeth.
Elas estavam deixando o fantasma fora de si. Ninguém nunca
zombou dele daquele jeito, elas não tinham o mínimo respeito pelos mortos? Ele
até havia mostrado sua trupe completa, na esperança de amedrontá-las
profundamente e o máximo que havia conseguido era um sorriso fino de
empolgação. Emburrado como se fosse criança, deixou o corpo despencar e
solidificou-se antes de chegar o chão, ficando ali deitado. Era engraçado
demais para elas e não conseguiram, apesar de não terem tentado com tanto
esforço, segurar a gargalhada.
- Sim, riam, riam suas megeras! Tirem divertimento do pobre
Leon! Que heresia! Que maledicência poderia justificar sua atitude tão pouco feminina!
E esta zombaria é sem fim?
- Ô, ô, ô, ô, calma lá, ô engomadinho. – Elisabeth cortou o
lamento dele. – Selina, pelo jeito as lendas estavam erradas. Não há nada
assustador aqui.
Selina meneou a cabeça, aproveitando para olhar de soslaio
para o fantasma Leon, achando muito engraçada a expressão de desespero dele.
- Nada assustador, dissestes? Pois bem, eu demonstrei toda
minha coleção de aterrorizantes imagens e ris disto? Adeus! – e sumiu.
As duas amigas se entreolharam, não sabendo se continuavam
rindo ou se paravam, tão idiota era a situação. Selina pegou seu diário de
campo e anotou tudo que haviam descoberto sobre o local, enquanto Elisabeth
batia umas fotos do grande salão. Pegaram suas bagagens e partiram, sem pressa,
para registrar toda a empreitada. Enquanto saíam, Selina teve certeza de que
alguém as observava e direcionou o olhar para a janela mais alta. Lá, um vulto
rapidamente se apagou, deixando a janela vazia, mas não rápido o suficiente
para que ela não percebesse Leon, ainda emburrado. Sorriu para Elisabeth e
partiram, secretamente se preparando para voltar e atormentar um pouco mais do
pobre fantasma.
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